02/02/2019

OPINIÃO- John Pilger: “O jornalismo real atua como agente do povo, não do poder”









John Pilger, correspondente estrangeiro, fez a cobertura da Guerra de Libertação de Bangladesh. Sua reportagem de primeira página, “Morte de uma Nação”, alertou o mundo para a luta de vida ou morte do povo bengali. Pilger tem sido correspondente de guerra, autor e realizador de documentários que ganhou duas vezes o mais alto prémio do jornalismo britânico. Pelos seus documentários, ganhou o Prémio da Academia Americana de Televisão, um Emmy, e o Prémio da Academia Britânica, atribuído pela Academia Britânica de Artes Televisivas. Recebeu o Prémio da Paz e a Medalha de Ouro das Nações Unidas. O seu documentário de 1979, “Camboja Ano Zero” é considerado pelo Instituto do Filme Britânico um dos 10 documentários mais importantes do século XX. É autor de numerosos best-sellers, incluindo Heroes, A Secret Country, The New Rulers of the World e Hidden Agendas. Numa entrevista (eletrónica) exclusiva com Eresh Omar Jamal de The Daily Star, Pilger fala da cobertura que fez da Guerra de Libertação do Bangladesh, do estado atual do jornalismo e das mudanças políticas atuais que ocorrem no Ocidente.

Num artigo para The Guardian , em 2008, escreveste que, quando foste fazer a cobertura da Guerra de Libertação do Bangladesh em 1971, Sheikh Fazilatunnesa Mujib, mulher de Bangabandhu Sheikh Mujibur Rahman, te perguntou: “Porque é que vieste quando até os corvos têm medo de voar sobre a nossa casa?” Mas não escreveste a resposta. Podes revelar qual foi?

Passei grande parte de 1971 em Calcutá, noticiando os sete milhões de refugiados que chegavam do então Paquistão Oriental. O percurso deles era ao longo do que os repórteres chamavam um “corredor de sofrimento”. No ano anterior, eu havia assistido à devastação causada pelo grande maremoto que engolira o desprotegido Golfo de Bengala. O que me chocou foi a falta de real preocupação do governo de Islamabad, que enviou o exército para impor a lei marcial ao povo de Bengala Oriental.

Era um canto perigoso do mundo para pessoas comuns e para os dissidentes do poder colonial que ali viviam; também era um local inspirador onde, tinha a certeza, havia um Bangladesh a lutar para nascer.

Gosto do povo bengali; admiro a sua resistência, o seu calor e a sua inteligência. No Verão de 1971, um jovem advogado idealista, Moudud Ahmed (que, mais tarde, ocupou um alto cargo no Bangladesh), levou-me à noite à Radcliffe Line que dividia a Índia do Paquistão Oriental. Marchámos atrás de um guia armado, com uma bandeira verde e vermelha do Bangladesh e escutámos os lancinantes relatos das atrocidades paquistanesas e vimos as aldeias destruídas.

O meu subsequente relato no London Daily Mirror e as fotografias do meu colega Eric Piper forneceram provas substanciais de que o governo de Islamabad estava a travar uma guerra genocida em Bengala.

Podes dar uma imagem geral do que viste acontecer em Bangladesh em 1971, e depois quando voltaste a fazer a cobertura da fome no Bangladesh em 1974?

À medida que íamos de aldeia em aldeia, esperando que os jatos passassem, os indícios eram cruéis. Onde houve comunidades hindus, cujo lugar étnico na Bengala Oriental muçulmana se tinha mantido, delicada mas pacificamente, desde a Partição, só havia agora ruínas. Onde quer que os punjabis atacassem, era o mesmo padrão de massacre de bengalis, muçulmanos e hindus. Numa aldeia, as pessoas haviam sido enterradas vivas na lama. De vez em quando, no meio daquela desgraça, eu ouvia as palavras desafiadoras ” Joi Bangla !”

Os anos que se seguiram à libertação foram extremamente difíceis. A guerra e a recusa intencional de recursos haviam deixado o Bangladesh sem nada. Filmei as consequências humanas de uma fome que devastava o país e os meus relatos perguntavam porquê.

Em Washington, Henry Kissinger, na altura poderoso secretário de Estado do presidente Nixon, considerava Bangladesh como um “caso bicudo”, o que era uma posição ideológica radical que dividia o mundo em “estados com êxito” e “estados falhados”. Lembra-te que os EUA, nessa altura, controlavam a maior parte do comércio alimentar mundial. Para Washington, os “estados falhados” eram dispensáveis, ou locais onde despejar excedentes; os carregamentos de alimentos eram usados como arma política, literalmente para “sabotar” governos de que a administração dos EUA não gostava.

Recusava-se o envio de alimentos e o apoio de organizações internacionais aos países que tentavam afirmar a sua independência – por exemplo, votando contra ou abstendo-se das moções dos EUA na ONU. Os dilemas de um estado novo e perturbado, como o Bangladesh, eram inúmeros. Conheci Sheikh Mujibur Rahman e ele perguntava, alto e bom som, se a democracia podia ou não sobreviver naquelas condições. Claro que as eleições recentes dizem que não sobreviveu. O conteúdo das urnas, a exibição de bandidos armados e a brutal intimidação dos candidatos da oposição envergonham as lutas de libertação e os que morreram nesses tempos épicos.

Para além da Guerra de Libertação do Bangladesh, também fizeste a cobertura de guerras no Vietname, no Camboja e na Nigéria. Que papel podem os jornalistas e os media desempenhar para ajudar a população que sofre por causa da guerra?

Os jornalistas podem ajudar a população, contando a verdade, pelo menos a verdade que conseguem encontrar e agindo não como agentes do governo ou do pode, mas da população. É isso o verdadeiro jornalismo. O resto é ilusório ou falso.

Já és jornalista há muitas décadas. Como é que o jornalismo mudou durante este tempo, segundo a tua opinião?

Quando comecei como jornalista, especialmente como correspondente estrangeiro, a imprensa no Reino Unido era conservadora e estava na mão de poderosas forças institucionais, tal como agora. Mas a diferença, em comparação com os dias de hoje, é que havia espaço para o jornalismo independente dissidente das autoridades. Esse espaço está hoje fechado e os jornalistas independentes foram para a Internet ou para um subterrâneo metafórico. O Bangladesh tem uma rica tradição de jornalismo independente; é preciso protegê-lo.

Quais são alguns dos maiores desafios e problemas que existem atualmente nesta profissão e quais são as melhores soluções para isso, na tua opinião?

O maior desafio é salvar o jornalismo do seu papel deferente de estenógrafo do grande poder. Os Estados Unidos têm, segundo a Constituição, a imprensa mais livre do planeta mas, na prática, tem media subservientes às fórmulas e às manipulações do poder. É por isso que os media deram a sua aprovação aos EUA para invadirem o Iraque, a Líbia, a Síria e dezenas de outros países.

Durante muitos anos foste um grande defensor de Julian Assange e da WikiLeaks. Como os vês no enquadramento dos atuais media mundiais?

A WikiLeaks é possivelmente a evolução mais emocionante do jornalismo na minha vida. Enquanto jornalista de investigação, tive muitas vezes que confiar nos atos corajosos e escrupulosos dos informadores. A verdade sobre a Guerra do Vietname foi contada quando Daniel Ellsberg revelou os Documentos do Pentágono. A verdade sobre o Iraque e o Afeganistão, a Arábia Saudita e muitos outros pontos de conflito foi contada quando a WikiLeaks publicou as revelações dos informadores.

Quando consideramos que 100 por cento das fugas para a WikiLeaks são autênticas e rigorosas, compreendemos o impacto, assim como a fúria gerada entre poderosas forças secretas. Julian Assange é um refugiado político em Londres apenas por uma razão: a WikiLeaks contou a verdade sobre os maiores crimes do século XXI. Não lhe perdoam e ele tem de ser apoiado por jornalistas e pessoas de todo o mundo.

Por que é que pensas que o populismo na América e na Europa está em cescimento, assim de repente?

“Populismo” é um termo pejorativo dos media . O que vemos é uma revolta da classe popular; as pessoas estão fartas da pobreza, da redução dos direitos ao emprego e da insegurança que estão a subjugar as suas vidas, provocadas pelas políticas económicas radicais dos seus governos.

Claro que há outras razões que contribuem, mas basicamente as pessoas comuns no Ocidente – em especial nos EUA, na Grã-Bretanha, em França, na Grécia e em Itália – estão a ver os seus preciosos ganhos desaparecerem. É por isso que os “Coletes Amarelos” em França têm um apoio tão amplo. Também é verdade que a invasão de refugiados dos países devastados pelas políticas gananciosas do Ocidente – como na Líbia e na Síria – proporcionaram os bodes expiatórios.

Porque é que pensas que as forças liberais nesses países estão a ser substituídas por elementos descritos como da extrema-direita?

As forças liberais são culpadas muitas vezes pelas condições que deram origem à extrema direita. Proporcionaram a divisão. Nos EUA, o Partido Democrático há muito que atraiçoou as pessoas comuns, que Hillary Clinton classificou abusivamente de “deploráveis”. Os liberais no Ocidente têm hoje uma obsessão de classe, por detrás duma aparência da alegada “política de identidade”. As pessoas comuns estão a começar a perceber isso ou, pelo menos, estão a tentar perceber.

O original encontra-se em www.thedailystar.net/… . Tradução de Margarida Ferreira.

este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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